quarta-feira, 30 de junho de 2010

[bem, vamos lá acabar com a história] antes que cheguem à fase das ameaças...

(É desta que a história termina. A sério que é. Não era preciso era terem reclamado tanto, que se não a terminei antes foi porque não pude... estive a trabalhar até às 21:00, depois entrei de Urgência durante a noite e, vai daí, como já estava com as mãos na massa, continuei a trabalhar até às 18:00. Como queriam que ainda escrevesse alguma coisa? Só se dissesse aos doentes, Ah e tal, tenho ali umas coisas para acabar de escrever, volte mais tarde...)




Num segundo tudo ficou pronto para partir, foi como se alguém tivesse ligado novamente a câmara rápida. Até o menino se tentou colocar de pé, mas foi impedido pelo próprio tio, que insistiu em carregá-lo às cavalitas. Quando chegamos, o carro já está pronto para partir porque o Padre Filomeno já imaginava a gravidade da situação. O menino, surpreendentemente, depois de tomar a água com açúcar não voltou a ter outra convulsão e parece ter já um novo brilho no olhar... Mas até quando? Subimos para o carro. Não há lugares sentados para todos, por isso a família vai na caixa aberta do jeep, juntamente com outros doentes que pediram para ser transportados para o hospital: uma grávida em fim de tempo, uma menina com um abcesso dentário e celulite da face e um menino desnutrido, todos com as respectivas famílias. Não podemos avançar muito rápido porque a estrada é péssima, o carro vai muito carregado [não vai como o da imagem acima, mas para lá caminha...] e ainda temos de passar pela outra aldeia para vacinar as crianças.

– Para a semana temos de ir a uma aldeia aqui perto. Nessa altura podemos fazer um desvio e vir também a esta. Vou só descer para os avisar que levamos um doente grave mas que voltamos para a semana, decidiu a Irmã.

Quando a Irmã Lurdes sobe novamente para o carro traz uma má notícia. O menino acabou de ter nova convulsão e desta vez ainda não recuperou a consciência. Só me apetece chorar... Subitamente vêm-me à memória as aulas de Infecciologia… Como pude ser tão auto-confiante e insistir para que o menino viesse? Aquela melhoria aparente pode não ter sido por termos tratado uma possível hipoglicémia, podem ter sido as típicas "melhoras da morte" da malária cerebral! Por que fui eu dar falsas esperanças e deslocar uma família tão pobre? Para os deixar com uma dor ainda maior? Olho novamente para trás. O menino acordou de novo. Parece que não aguento mais tanta angústia... Dão-lhe mais água com açúcar e mais uma vez parece melhorar... A Irmã parece ler os meus maus pensamentos:

– Estamos a fazer o que podemos, já não seria o primeiro doente a morrer-nos no caminho. Mas Nossa Senhora há-de nos ajudar, vamos rezar por ele.
A Martine também me tenta confortar:
– Não podemos fazer mais do que aquilo que estamos a fazer.

Parece que as palavras delas me acalmam um pouco... Não sei quantas vezes mais o menino convulsiva até chegarmos ao hospital, com ele completamente inconsciente há mais de 15 minutos. Já levo a medicação programada e as contas todas feitas. Enquanto os enfermeiros lhe colocam uma via de acesso venoso, ajudo os outros doentes a descer do carro. Um dos meninos está a tremer de frio... (Arrefeceu durante o fim da tarde). Tento abraçá-lo para o aquecer, mas tem medo de mim. Claramente nunca viu uma mulher branca. Entrego o meu casaco de malha à mãe para vestir o menino, mas tenho de correr para dentro para preparar a medicação, "Meu Deus, não me falhes, se conseguimos chegar até aqui com ele vivo, não é justo que ele nos morra agora, lutou tanto..." A febre volta a subir, mas desta vez foi mais fácil arrefecê-lo e, uma hora depois, já está novamente fresco.

– Vá lá, acorda, ainda tens tanto para viver!

O quinino vai correndo gota a gota, lentamente para dentro da veia. Ainda faltam três horas para terminar a primeira dose. Quase ao fim das quatro horas abre os olhos e, pela primeira vez, volta a falar. Pergunta onde está, que lugar é aquele. O exame neurológico não mostra alterações. Contra todas as expectativas, está vencida a batalha, felizmente! Ao menos valeu a pena tanto sofrimento… Nimutthapele Muluku!

Já me posso preocupar com os outros doentes. A grávida está bem, mas é o décimo filho e ainda não há qualquer sinal do trabalho de parto. Vão ser uns dias longos por aqui... A menina do abcesso dentário e celulite da face vai começar o antibiótico e o menino desnutrido está ao colo do cozinheiro do hospital, o Sr. Manuel, que já lhe começou a preparar as soluções de recuperação nutricional, feitas segundo os preceitos da Organização Mundial de Saúde, com um toque da alta cozinha Iapalense, “uns pozinhos do Sr. Manuel”, como o próprio faz questão de dizer.

Foi um dia rápido! Rápido demais, talvez, para digerir tudo quanto vi... Ontem não podia mesmo imaginar que viria a ter mesmo um curso relâmpago de inculturação no primeiro dia. Só espero terminar a minha estadia compreendendo um pouco melhor este povo. A Irmã Lurdes move-se no meio deles como peixe na água, tenho isso a meu favor, pelo menos...

terça-feira, 29 de junho de 2010

[este blog não tem livro de reclamações] valha-me santa maria do mail que tenho de criar um...

Meus queridos,

Eu juro que vos adoro. Eu escrevo especialmente para vocês, que me fazem rir nos comentários que aqui deixam. E até me fazem surpresas com pesquisas no google (não, não é aquela das mulatas selvagens, que já não tem piada, é a outra do Senhor da África do Sul, que afinal não era da África do Sul e sobre quem também ficámos na dúvida se seria um senhor em vez de uma senhora ou vice-versa)! Se não vos amasse profundamente, que amo, não viria aqui todos os dias. Mas eu escrevo apenas à medida do que posso. Entre duas consultas e ao chegar a casa ao final da noite. E como eu sempre digo (gosto de me citar a mim própria, como já certamente notaram), quem dá o que tem, a mais não é obrigado...

Tudo isto para dizer que espero que compreendam que não posso prometer um final feliz em todas as histórias. Só vos posso garantir que são todas verídicas. Ah, mais uma coisa: quem lê um post intitulado "a tristeza só não espreita a cada esquina porque vive em espaço aberto", lê-o forçosamente à sua responsabilidade. Somos todos adultos e eu até sou uma fervorosa adepta do WYSIWYG*. Mas claro, também compreendo que ninguém é obrigado a vir aqui ler coisas mais tristes do que aquelas que já vê todos os dias. Por isso lembrei-me agora de oferecer um serviço adicional aos meus amigos: podemos, talvez, colocar uma hiperligaçãozinha no início dos posts potencialmente mais geradores de angústia, para ser possível saber se a história por fim terminará bem ou mal, podendo depois decidir em conformidade se o querem ler ou não... Que me dizem?

Beijos de mulata para todos.

* What you see is what you get.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

[welcome to mozambique] a doença a céu aberto

(Continuação do post de ontem, como prometido. Está aqui mesmo coladinho abaixo, mas o link vai na mesma.)


Chegamos por fim a casa do menino, após uma caminhada que deve ter demorado uns bons 15 minutos quase a correr. A família está reunida cá fora sob o alpendre da casa, fitando o menino com um ar consternado, como se estivessem a velar um caixão. O menino deitado no chão, com a cabeça apoiada sobre os joelhos de um outro jovem está vivo! Consciente e orientado. Suspiro de alívio. Graças a Deus! Mas está a arder em febre. Deve ter tido uma crise convulsiva e depois entrado em coma durante alguns minutos e a família pensou que tinha morrido. Tem malária cerebral de certeza! Está prostradíssimo, suado e com a tonalidade acinzentada que só se vê nas doenças graves. Temos de o levar para o hospital o mais rápido possível, mas sabe Deus se lá conseguirá chegar vivo... Começo a observar o menino, que no mesmo instante começa a fazer movimentos periódicos com os olhos. Vai convulsivar novamente.
– Vamos deitá-lo, que é melhor.

Durante minutos intermináveis o menino é sacudido por movimentos clónicos dos quatro membros, ante o choro manso da família.

– Temos de o levar para o hospital o mais rápido possível, senão morre de certeza! – digo à família, mas ninguém me parece ter compreendido. Peço ao senhor Rafael para me traduzir para macua, mas também ele permanece calado, como se nem tivesse prestado atenção. O que será que se passa? Por que é que de repente ficou tudo em câmara lenta? Por que é que ninguém se move, ninguém fala, ninguém faz nada para salvar este menino?

– O que é que se passa, Irmã, não vamos?
– Espera um pouco, não te impacientes, o pai e a mãe estão a decidir se levam ou não o menino para o hospital.
(Terei ouvido bem?)
– A decidir se o levam ou não?! Mas não sabem que o menino vai morrer de certeza se não o levarem?
– Tem calma, esta cultura é muito especial, há valores que se sobrepõem a todos os outros. Se por acaso acontece o menino morrer longe daqui, a sua alma nunca mais vai encontrar o caminho de volta, nunca poderá ser feliz na outra vida e a família vai sentir-se responsável por isso.

O menino começa novamente a convulsivar e ajoelho-me para o amparar enquanto a família se coloca de pé em redor, com uma face solene.
– Estão a dizer que os antepassados tomaram conta do menino, já estão no corpo dele. Para eles é como se já estivesse morto...

De facto, que outra interpretação é que uma cultura que nunca teve contacto com a ciência, poderia dar a uma convulsão? Se calhar foi por isso que disseram há pouco que ele tinha morrido, quando era óbvio que ainda estava vivo. Mas assim não vai haver maneira de convencer a família de que o menino ainda pode sobreviver... A Irmã continua a tentar. Fala calmamente com os pais, expondo os seus argumentos, ajudada pelo Sr. Rafael. Diz que podemos tratar a doença do menino e, se ele sobreviver, os antepassados não vão entrar no corpo dele.

Eu estou completamente fora de mim, estamos a perder um tempo precioso, já podíamos estar a chegar ao carro e o menino está com convulsões quase de cinco em cinco minutos. Os pais, por fim, dão sinal de anuimento e a mãe desaparece dentro de casa, para colocar roupa, comida e uma panela dentro de um cesto para irem para o hospital.

– Então, vamos?
– Ainda não, foram chamar o tio.
– Como?! Chamar o tio para quê, se os pais já concordaram? Agora é preciso ir chamar a família toda?!
– Fala mais baixo, que eles podem compreender-te! Entre os macuas quem tem direito e exerce o poder paternal sobre as crianças não é o pai, mas o irmão mais velho da mãe. O pai pode dar a sua opinião, mas quem tem efectivamente o poder de decisão é o tio, e isso é incontornável.

Subitamente recordo que alguém me tinha dito antes de vir que a sociedade macua era matrilinear, mas nunca me tinha dado ao trabalho de interiorizar e operacionalizar essa informação... Nem me tinha passado pela cabeça que nunca conseguiria exercer Medicina sem conhecer a estrutura e o funcionamento da sociedade. São tantas as coisas que damos como adquiridas quando nos movemos em terreno conhecido... Os próprios macuas têm um provérbio que diz: Quando chegamos ao mar, as leis do rio já não servem...

Mais uma convulsão. A situação é crítica, mas temos de tentar mantê-lo vivo até chegarmos ao hospital. Só então começo a raciocinar em termos médicos, vamos arrefecê-lo, dar-lhe paracetamol e cloroquina. Nada disto vai resolver o problema, mas pode ser que o ajude a não piorar. Outra causa tratável de convulsão é a hipoglicémia, que é muito frequente na malária maligna.
– Vamos dar-lhe água com açúcar.
A família olha-me, consternada:
– Não temos açúcar, Irmã...

Meu Deus, como é possível uma pobreza a este ponto? O que é que eu estou aqui a fazer, no meio de uma cultura que não conheço e não compreendo e ainda por cima com a fantasia de que consigo tratar alguém sem meios nenhuns... Procuro na carteira, esperançada de encontrar algum pacote esquecido de um café de Lisboa e, de facto, lá encontro alguns pacotes de açúcar Delta®, que coloco num copo de água que me trazem.
– Como se chama o menino? – aproveito para perguntar.

Levítico é o nome. O tio chega, finalmente, espavorido e com lágrimas nos olhos, estava na machamba, um pouco longe dali. Ficou contente com a proposta de levar o menino para o hospital e deu o seu acordo de imediato.

(Bem, já se percebeu que a história ainda não terminou... Mas continua.)

domingo, 27 de junho de 2010

[welcome to mozambique] a tristeza só não espreita a cada esquina, porque vive em espaço aberto

(Continuando esta história...) Está na hora da missa!





De caminho somos interceptadas por um professor de uma das turmas que hoje fará a Primeira Comunhão, que se aproxima trazendo pela mão um menino com ar triste, que aparenta uns 8 ou 9 anos.
– Quando estava a jogar futebol, há uma hora, caiu para o chão e ficou estendido. Só acordou depois. Faço várias perguntas ao professor, mas não o viu cair. Ninguém sabe, portanto, se tropeçou e bateu com a cabeça, perdendo a consciência ou se desmaiou. A Irmã Lurdes põe-lhe a mão na testa.
– Está fresco... E não tem má cara...

Um exame neurológico sumário não revela alterações, deve ter sido uma breve perda de conhecimento depois do traumatismo craniano, penso. Como se tivéssemos telepatia, a Irmã leva a mão à carteira para ir buscar os medicamentos que sempre a acompanham:
– Vai tomar este comprimido de paracetamol e vai-se deitar agora. Antes de irmos venham-nos dizer como está.
– Obrigado, Irmã.

Continuamos para a missa, pois já se ouvem os cânticos da entrada. Batuques e vozes. Batuques e vozes apenas. Fico sempre surpreendida de como conseguem criar uma harmonia tão bonita e envolvente.

Depois da missa, que durou mais de duas horas sem que se desse pelo tempo passar, somos recebidos no pwarrow do régulo, a sala das visitas importantes da aldeia, para um almoço que cheira deliciosamente... Oferecem-me água para lavar as mãos, mas recuso delicadamente (esta água é um líquido tudo menos incolor e inodoro, com alto teor de matéria orgânica em suspensão, em que quase julgo ver vibriões da cólera e schistosomas a proliferar numa algazarra primaveril). Acabo por limpar disfarçadamente as mãos com um toalhete Dodot® e sentar-me à mesa. A Irmã Lurdes tinha-se compadecido de mim no meu primeiro dia e tirou da carteira um conjunto de talheres. Mas avisou-me logo que seria uma vez sem exemplo, porque em Moçambique não sejas romano... e não devemos ter modos muito diferentes dos das pessoas que nos recebem. Concordei com um gesto, mas todos sorriram do meu alívio de não ter de comer com “os talheres que Deus nos deu”. Galinha com milho e feijão, uma iguaria apenas reservada para os dias de festa brava.

Depois de almoço, quando já nem nos lembrávamos de que tínhamos pedido antes da missa para fazer café, a mamã Teresa aparece com um café balsâmico e fumegante, a uma temperatura que me tranquiliza completamente quanto à ameaça infecciosa da água.
– Parece que revivi... – exclama a Martine ao primeiro golo. Já parece completamente refeita da noite em claro... E a conversa corre animada sobre as actividades da comunidade.

De súbito, somos chamados cá fora. O professor do menino, que nos abordara antes da missa diz-nos:
– Sabem, Irmãs, o menino que mostrei há bocado...
– Sim?
– Já despediu.

Não compreendo o que diz, entendo as palavras, não o sentido, mas a Irmã Lurdes parece ter tido um choque:
– Como?!
– Já despediu, Irmãs, perdeu a vida...

Que horror! Meu Deus, como é que é possível?! Mas nem sequer parecia doente... De tal forma não fiquei preocupada com ele que já só vagamente me lembrava que tinha de perguntar pelo menino antes de ir... Olhamo-nos consternadas. Eu certamente mais triste do que a Irmã, pois é o meu primeiro dia, no fundo o meu primeiro caso clínico. A face triste do menino vem-me à memória com uma angústia brutal.

– Nem posso acreditar, meu Deus... tão de repente... e logo uma criança.
Ocorre-me então uma pequena luz de esperança:
– E se estiver só desmaiado outra vez? Alguém lhe viu o pulso, viram se respirava?

O professor acena negativamente.
– Onde é que ele está? Vamos lá agora mesmo, decidiu a Irmã Lurdes.
– Mas é longe, Irmãs, ele está em casa.
– Vamos embora!

Com o coração completamente aos pulos lá sigo o professor, atrás da Irmã Lurdes e do Senhor Rafael.
– Vamos fazer o que pudermos. Pode ser que esteja vivo, murmura a Irmã.

Mas eu não me consigo distanciar desta forma da situação. Sinto-me inteiramente responsável por esta morte. Avançamos hors piste, a corta-mato. Não há sequer um caminho por onde possa passar uma bicicleta. Seguimos por um terreno arenoso e acidentado, onde os sapatos se afundam, impedindo-nos de avançar rapidamente. Como é que as pessoas não se perdem se não há ruas ou caminhos e muito poucos pontos de referência? De vez em quando um embondeiro, de vez em quando uma palhota, mas tudo me parece igual...

(Prometo que continua...)

[nomes que dizem tudo #11] a motivação é um instrumento de trabalho

Basta olhar para compreeder a diferença de atitude...

[inspiração para uma despedida] lamúria em dó de si

Canção Amarga

Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
— Importa amar, sem ver a quem...
Ser mau ou bom, conforme os dias.

Agora, tu, só entrevista,
quantas imagens me trouxeste!
Mas é preciso que eu resista
e não acorde um sonho agreste.

Que passes tu! Por mim, bem sei
que hei-de aceitar o que vier,
pois tarde ou cedo deverei
de sonho e pasmo apodrecer.

Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
— Importa amar, sem ver a quem...
Ser infeliz, todos os dias!

David Mourão-Ferreira, in A Secreta Viagem

sábado, 26 de junho de 2010

[o meu carro e eu] marcas da estrada


Esta manhã ouvi uma amiga minha, regressada de Marrocos, comentar:
- Recuso-me terminantemente a lavar a carroçaria do meu carro... Vai ficar em versão Lawrence das Arábias até que chova! As marcas da estrada e do uso podem não ser fabulosas, mas dão-lhe um ar vivido, como convém a qualquer mulher jovem e com garra.
Resposta de seu pai, que é um homem sábio:
- Minha querida filha... dado o aspecto dele e de acordo com a nova versão que lhe quer dar... não prefere trocá-lo por um camelo?

[inspiração para um reencontro] talvez até com um cravo cravado no peito, para ser mais pungente

Sotto Voce

É possível que eu esqueça a liquidez da lua
o sono dessa rua às três da madrugada
a longa caminhada orquestrada pela chuva
a sombra de uma luva em cima de uma vaga

É possível que eu esqueça o dia em que nasceste
Em que depois da luva apareceram as mãos
É possível que eu esqueça. Ou me seja indiferente.
É preciso que não. É preciso que não.

David Mourão-Ferreira

[nomes que dizem tudo #10] e me derretem...

Já vos contei que sou madrinha à distância de uma menina absolutamente amorosa chamada Fresquinha?

[não rima] mas são todos decassílabos



O exame do Vasquinho da Anatomia. Obra-prima em decassílabos heróicos. Por acaso eu é mais alexandrinos...

(E atentem para o uso mil vezes mais sensato que antigamente se dava à vuvuzela.)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

[vozes brancas* #17] com sotaque cigano

Esta manhã, na consulta, estive a ver um menino de etnia cigana de 11 anos, com um humor irritável até à quinta casa, muito mal disposto por ter de estar ali sentado na consulta e com uma linguagem de insultar um taxista. Digo taxista porque hoje em dia já não existem carroceiros. Nem mesmo entre os ciganos. Se bem que comparar a linguagem daquele miúdo à de um taxista talvez fosse pouco. Só se fosse um taxista pouco polido e com uma história anterior de acidente isquémico do lobo frontal. Só que hoje em dia também não devem existir assim tantos, sobretudo com aquele pormenor do AVC... Mas pronto, se calhar já perceberam a ideia e arrematávamos por aqui, que esta é a melhor comparação que consigo arranjar neste momento: o rapaz tinha uma linguagem de fazer corar um taxista pouco polido e com o lobo frontal avariado.

Adiante. Ora, eu precisava de lhe medir o volume dos testículos, procedimento para o qual se utiliza uma espécie de colar, com contas progressivamente maiores que se comparam com o tamanho dos "amiguinhos". Como o menino se recusasse a ser observado, mandei buscar os homens da família para o imobilizar (por uma vez na vida agradeci que nesta etnia fossem sempre famílias inteiras a acompanhar as crianças ao hospital). E com o pai, o avô e o padrinho com cara de poucos amigos dentro da sala, o menino lá se dispôs "voluntariamente" a despir-se e medi-o rapidamente.
- Estás a ver, Moisés, o direito tem... 2 e o esquerdo... deixa cá ver... olha, também!

Responde o menino, com um ar maroto:
- Ah... entã isso deve ser o que vamos teri hoje à noite!

A minha cara de oh,valha-me Deus deve ter sido bastante expressiva, porque a mãe se apressou a explicar de imediato:
- ligue, Doutora, que ele está a falari é do jogo de futeboli! Está a dizeri que hoje vamos empatari 2 a 2 no Portugal-Brasil...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[levantar-se com as galinhas] ...como o bispo

Rapariga com Galinhas, Paula Rego


Em Iapala, a expressão levantar-se com as galinhas dava sempre direito a um sorriso bem disposto das Irmãs e havia invariavelmente uma ou outra que acrescentava: Pois é, amanhã vamo-nos levantar com as galinhas como o Bispo.

A primeira vez que ouvi aquela prótese aforística não estranhei nada nem liguei nenhuma. Os bispos são habitualmente pessoas ocupadas e têm certamente de se levantar cedo muitas vezes. Mas a verdadeira razão pela qual me passou ao lado o olhar meio gozão das Irmãs foi, certamente, o impacto emocional que esta expressão tem em mim. É proverbial a minha dificuldade em acordar de manhã cedo. E pior do que acordar de manhã cedo, só mesmo acordar e levantar-me de manhã cedo. Mas, na segunda vez, a expressão de gozo era tão evidente que acabei mesmo por perguntar:

- Como o Bispo? Mas porquê como o Bispo?
- Ah... isso tem uma história...
(Ah... afinal havia história ali pelo meio... e ou muito me enganava ou as Irmãs estavam mortinhas por contá-la!)
- Tem história? Ah... E que história é essa?
(Não se ponham é já a imaginar histórias lúbricas, que isto pode não ser um blog sério, mas pelo menos tenta parecê-lo... E com Bispos e Irmãs, convenhamos que não há assim muito potencial...) Mas então a história era a seguinte:

Antes da Independência de Moçambique, no bispado de Nampula bispava um Bispo chamado D. Manuel Vieira Pinto. Pelo que as Irmãs contam e as pessoas que viveram esse tempo corroboram, D. Manuel Vieira Pinto era um homem muito carismático, muito sensato, extremamente afável e compreensivo e com um talento de orador nato. Interessava-se pelos problemas do povo e procurava o mais possível entrar em contacto com as pessoas, viajando, mesmo durante a guerra, por toda a província. O povo venerava-o e ansiava pelos seus conselhos. No final das visitas ofereciam-lhe o sempre o melhor que tinham. Geralmente os presentes do povo eram alimentos: bananas, milho, galinhas. E, obviamente que, estando no mato, literalmente a anos-luz da civilização, o único método de conservar uma galinha para não se estragar na viagem de regresso, era preservá-la... viva.

D. Manuel Vieira Pinto era, no entanto, paradoxalmente, um homem também muito frágil e sensível, quer em termos físicos quer em termos emocionais, pelo que as Irmãs se afadigavam em mimos e cuidados para minimizar o seu desconforto quando pernoitava na Missão de Iapala. Uma tarde, após uma longa saída de três dias para o mato, as Irmãs e o Bispo regressaram à Missão com um carregamento considerável de galináceos, que se apressaram a entregar a um empregado da Missão (Barril de seu nome) com a expressa indicação para não as misturar com as galinhas das Irmãs.

Nessa noite, o Bispo, exausto, recolheu cedo ao seu quarto para se ir deitar. No entanto, o quarto, habitualmente tão mimoso, tão fresco e arejado, especialmente preparado para si pelas Irmãs, exalava um cheiro nauseabundo que não o deixou dormir em toda a noite. Intrigado, o Bispo dava voltas na cama sem compreender uma falta de consideração tamanha das Irmãs. Ainda se estivesse numa casa de padres, que habitualmente pensam pouco no conforto e limpeza dos aposentos dos hóspedes, agora em casa das Irmãs... E logo das Irmãs de Iapala, sempre tão solícitas... Que se teria passado?

Só adormeceu de madrugada, vencido pela fadiga, para ser acordado meia hora depois pela eloquente explicação para a falha terrível das Irmãs: cocorococó! O cacarejo vinha de dentro do seu quarto! Atónito, abriu o olhos e viu duas dezenas de galinhas a sair de baixo da sua cama, onde tinham pernoitado e a andar pelo quarto, desconcertadas pela dureza do chão que incessantemente tentavam bicar... O Sr. Barril tinha guardado as galinhas no quarto do Bispo para ter a certeza de que não se confundiam com as das Irmãs...

[vozes brancas* #16] e erros adoráveis

Menino de 3 anos hoje na minha consulta:
 - Eu amanhã vou com o meu avô andar de bicicleta para o pé da Quinta Pedalógica!
(Após o que a mãe me perguntou se fazia mal em não o corrigir porque achava aquele engano delicioso... adoro mães sensatas e sensíveis!)

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

[há festa em murralelo]




(continuando...)
Num instante chegámos a Murralelo e fomos muitíssimo bem recebidas pelo Padre Filomeno, um missionário mexicano divertidíssimo e por um casal italiano de meia-idade, benfeitores da Missão, que o acompanhavam no mato há três dias e não esperavam que conseguíssemos chegar até ali naquele dia.
– Não vos esperávamos... Mas eu já devia ter adivinhado... Como conseguiram vir?
– Alguma vez eu iria perder a Primeira Comunhão dos meus meninos?, a Irmã Lurdes fingindo-se ofendida... Tinha sido ela a principal impulsionadora desta celebração.

Durante a viagem de comboio tínhamos aproveitado para nos conhecermos e a Irmã tinha-me falado da importância desta festa, com um significado muito particular na História recente de Moçambique. Durante a guerra civil a instabilidade era tanta e as estradas tão perigosas, que não era possível os padres deslocarem-se para fazer qualquer celebração. Nem mesmo os funerais tradicionais ou os rituais de iniciação, tão importantes na cultura macua, eram cumpridos. Nos anos da guerra ninguém construiu casas, ninguém cultivou os campos, ninguém dormia uma semana seguida no mesmo local... Só depois de a guerra civil ter terminado é que foi possível reconstruir as estradas, e a paz recente foi terreno fértil para reavivar a fé, que ainda assim nunca tinha abandonado as pessoas. De facto, em todos os locais de Moçambique por que passei, os Missionários contavam o mesmo quadro: as pessoas durante a guerra, depois de anos seguidos sem alimentação regular, sem um tecto, sem um livro, sem uma bíblia, sem uma igreja, sem um padre, continuavam a juntar-se todos os dias para rezarem em conjunto pela paz. Em 1993, a conciliação entre os dois partidos, Frelimo e Renamo, tinha chegado finalmente. E agora era chegada a altura da Primeira Comunhão dos primeiros bebés que tinham sido baptizados depois da guerra!

A alegria das pessoas era evidente, expressa na forma como se vestiam, como tinham ornamentado a igreja com flores do campo, como tinham construído um enorme telheiro para celebrar a missa no exterior, uma vez que a afluência seria tal que a multidão não caberia na igreja, na forma como ainda ensaiavam uma última vez as várias danças e os cânticos, para que nada corresse mal. “Temos uma Paz que já deu frutos!”, era uma ideia que se ouvia um pouco por todo o lado. Tocante, sem dúvida e que privilégio, assistir a um acontecimento destes!

Os dois italianos, Martine e Roberto, estavam também muito felizes, mas visivelmente cansados, sobretudo ela, que me confessou que não tinha conseguido repousar quase nada durante a última noite. Tinham dormido numa palhota numa esteira colocada directamente no chão, ao contrário dos dias anteriores, em que tinham dormido também em palhotas, mas numa espécie de camas de campanha feitas com capim e bambu. Todos os ruídos que ouvira durante a noite lhe tinham feito lembrar ratos ou animais rastejantes. Talvez estivesse sugestionada pelo facto de ter sabido que um animador paroquial tinha sido mordido por um escorpião na noite anterior, admitiu, mas durante a noite é sempre mais difícil combater os fantasmas... e agora estava a morrer por um café...

Lembrei-me do café torrado que tinha comprado no comboio e perguntei à Irmã Lurdes se haveria maneira de fazer café. Talvez houvesse, sim... Depois das primeiras apresentações às pessoas mais importantes da comunidade, a Irmã Lurdes foi ter com uma mamã, que pilava milho à porta de casa e perguntou-lhe se podia pilar o nosso café e prepará-lo, ao que ela anuiu com um sorriso, agradada por poder satisfazer um pedido da Irmã, que lhe salvara o filho durante a epidemia de cólera do ano anterior. De uma penada despejou o milho de dentro do pilão para uma capulana, arrumou-a dentro de casa e começou a pilar os grãos de café, que exalavam um aroma delicioso àquela hora do início da tarde. Em poucos segundos juntou-se uma multidão de crianças curiosas à nossa volta, divertidas pelo nosso ar interessado numa cena tão banal do dia-a-dia.

Um riso geral quando eu e a Martine tentámos um pouco desajeitadamente pegar no pilão, imitando os gestos da mamã. Depois de moer o café colocou-o sobre a peneira e separou as impurezas, o grãos mais finos, que serviriam para utilizar agora na preparação do café, e os mais grossos, que seriam moídos mais tarde, para não perderem o aroma.

De súbito, o chamamento para a celebração interrompe o processo de preparação do café. Volto-me, incrédula, para a origem do som que me parece ser de um sino, para descobrir que se trata de uma jante de um pneu de um jeep, pendurada num tronco de árvore, que o animador paroquial toca solenemente como se fosse um gongo. Está na hora da missa!

(continua...)

[este blog não possui livro de reclamações] por enquanto

Depois de várias reclamações hilariantes a propósito do post de anteontem sobre a senhora com perturbação esquizoafectiva no serviço de urgência (que não linco porque já passa das 05:00 da madrugada e deu-me a preguiça, mas é fácil de encontrar, basta fazer um scroll down, por amor de Deus, vocês estão muito mal habituados), depois de alguns pedidos de esclarecimento velados da parte de pessoas que se sentiram atingidas - ó valha-me São Vito, obviamente não estava a falar de ninguém que eu conheça! E depois de dois ou três "Ah e tal, eu também já estive a tomar o Effexor e não estava como essa senhora", gostaria de fazer as seguintes ressalvas:

a) todas as histórias aqui contadas são verídicas e as explicações apresentadas são, em última análise, da exclusiva responsabilidade da autora que escreve por aqui. E que escreve como pode. E quem dá o que tem... Desculpem qualquer coisinha, tá?;

b) a senhora com perturbação esquizoafectiva estava, de facto, perturbada, passe o pleonasmo. Completamente fora da realidade. Passada dos carretos. Acho que isso é imediatamente perceptível pela maioria das pessoas que leram as primeiras... er... cinco linhas do post. (Existiria, claro, uma hipótese alternativa, que era tratar-se daquela professora de Mirandela que posou para a Playboy e andou nas bocas do povo e da comunicação social durante semanas, mas essa provavelmente nunca iria ao São Francisco queixar-se de que a incomodava que os homens agora a andassem a ver nua...);

c) a senhora estava medicada com lítio, que é um estabilizador de humor e três antipsicóticos potentes. O Effexor, que é um antidepressivo dos mais utilizados, seria só para adicionar à restante medicação para lhe tratar, pelo menos parcialmente, a depressão. Não serviria para tratar todos os outros sintomas e delírios. Até aqui tudo bem? Estão comigo?;

d) o corolário do enunciado e das alíneas anteriores é que os estimados leitores que estejam ou já tenham estado a tomar o Effexor XR 75 e que não estão medicados com lítio e mais três antipsicóticos potentes, provavelmente não estão fora da realidade e não precisam de pensar que afinal estão doidos e não tinham dado por nada.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

[alhos e blogalhos] isto só na blogosfera

O Senhor afinal não reside na África do Sul mas respondeu-me. E pôs-me tão, mas tão bem disposta! O comentário está à vista de todos, na caixa dos comentários respectiva, mas apeteceu-me trazê-lo um pouco mais para a luz do dia:


Um senhor (ou uma senhora?) que não reside na África do Sul disse...

Não resido na África do Sul, mas sim em Moçambique. O meu StatsCounter também atina mal com a minha própria localização: às vezes diz que estou na Beira, às vezes em Maputo, e eu não estou na Beira nem em Maputo. Quer dizer, já não sei, começo a ficar confuso... Onde estarei, afinal?

Já agora: como sabe que sou um senhor? Não posso ser uma senhora?

Ainda bem que gostou da minha brincadeira. Supreendida, calculei que ficasse, mas ainda bem que ficou também contente. Viu uma segunda busca que fiz logo a seguir que também vai dar ao seu blogue? Já não me lembro exactamente, mas era qualquer coisa como "assim também se vai lá = 412,5 Hz dar". E foi!

[welcome to mozambique] instantes















Ao fim da tarde, na Costa do Sol em Maputo, homens e mulheres esperam o regresso da faina para comprar o peixe que revenderão horas depois num mercado informal mais ou menos próximo, enquanto, a 200 metros dali, um homem cumpre um ritual de purificação nas águas do mar, levado a cabo por duas sacerdotisas que se afadigam nas rezas para que os feitiços lançados sobre ele sejam levados para longe pela corrente.

terça-feira, 22 de junho de 2010

[as melhores do serviço de urgência] não há coincidências!

Há alguns anos atrás. Serviço de Urgência de Psiquiatria. Hospital de São Francisco Xavier, Lisboa.

Observamos uma senhora de seus 40-45 anos, jornalista, com uma perturbação esquizoafectiva*. A senhora fora enviada à urgência com uma carta do seu Psiquiatra assistente pedindo o internamento por considerar que a senhora estaria com uma depressão major, com características psicóticas. O meu tutor vai-lhe fazendo perguntas para avaliar a gravidade da doença.

Meu Tutor (MT) - O que é que a incomoda mais desde há umas semanas para cá?
Doente (extremamente lentificada) - Incomoda-me não ter energia para fazer nada... Não consigo sair à rua porque todas as pessoas me insultam com os olhos. E os homens agora conseguem ver-me nua se estiverem sentados [olhando para o meu tutor, sentado do outro lado da secretária, com um ar de asco desmedido] e o problema é que tenho uma esplanada na minha rua sempre cheia de homens.
MT (evitando olhar a doente de frente para ela não se sentir incomodada por estar nua, mas permanecendo sentado) - Mas... e em casa, consegue estar?
Doente (olhando ligeiramente para o lado, incomodada por ele o estar a ver nua) - Sim, em casa sim.
MT - E consegue, por exemplo, distrair-se a ver televisão?
Doente - Isso também é um problema... Custa-me que agora só falem de mim nas notícias e em todos os programas. Até na rádio... E já não consigo ir trabalhar porque deixei de ter privacidade... [fácies incrivelmente infeliz].
MT - Então?
Doente - Agora toda a gente sabe da minha vida. Assim que faço qualquer coisa, assim que penso sequer em fazer o que quer que seja, toda a gente fica imediatamente a saber... É horrível... Não posso pensar em nada...
MT (com ar de quem faz ideia daquilo por que ela está a passar) - Pois... faço ideia daquilo por que está a passar... Mas infelizmente não temos vagas por enquanto para ficar internada. Pode ainda demorar dois ou três dias, ou até uma semana. Até lá acho que deve ficar a tomar mais um medicamento para além dos que está a tomar agora... A senhora alguma vez tomou o Effexor**?
Doente (olhando-o de lado, como que a tentar perceber se ele a estaria a espiar para a ver nua disfarçadamente pelo cantinho do olho) - Não, acho que não...
MT (levantando-se, finalmente) - Effexor XR 75... Nunca tomou?
Doente (mais contente por ele se ter levantado, deixando de a conseguir ver nua) - Não, mas posso tomar. Acha que isso pode fazer com que eu deixe de transmitir os meus pensamentos a toda a gente?
MT - Acho que a poderia fazer sentir-se melhor.
Doente - Como é o nome do medicamento? Effexor?
MT - Effexor XR 75.

Nisto, batem à porta e entra um delegado de informação médica, com um sorriso de orelha a orelha, trazendo uma brochura que dizia em letras garrafais: Effexor XR 75.
- Era disto que precisava, Doutor?


*A perturbação esquizoafectiva é assim um mix entre a esquizofrenia, com as suas ideias bizarras e alucinações e a doença bipolar, com os seus períodos alternantes de depressão e euforia.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

[inspiração para um reencontro] momentos de loucura

Lovers and madmen have such seething brains,
Such shaping fantasies, that apprehend
More than cool reason ever comprehends.
The lunatic, the lover, and the poet
Are of imagination all compact.
One sees more devils than vast hell can hold—
That is the madman. The lover, all as frantic,
Sees Helen’s beauty in a brow of Egypt.
Shakespeare in A Midsummer Night's Dream

[sms we can!] relato de uma despedida

He wrote - I wish Mr. Samgrass would go. I'm sick of being grateful to him. Lord Flyte.
And I answered - That was cruel. I'm used to the idea of it. What hurt last night was that there was nothing happy about him. And last night of all nights... Lady Marchmain.

[para si, senhor residente na áfrica do sul] you made my day!

Para o senhor residente na África do Sul, que conseguiu vir dar a este humilde estabelecimento não comercial através da seguinte pesquisa "pode-se ir parar ao beijo de mulata sem ser à procura de mulatas selvagens ou de mulatas nuas" tenho a dizer:

- I love you! You made my day! Um beijo de mulata só para si.

 Bem-haja e Deus o guarde. Para todos, fica aqui a promessa de só escrever nova entrada de "alhos e blogalhos" quando plenamente se justificar e nunca mais sobre "mulatas selvagens". Tenho dito.

[welcome to mozambique] as micaias

National Geographic Magazine, 2005

Se há coisa que eu amo, desde o primeiro dia, na paisagem de savana seca do Sul de Moçambique são as micaias. Com os seus espinhos, a sensação de serem as únicas sobreviventes no meio da secura atroz da planície. E a sua copa espalmada, como se o céu ali fosse demasiado baixo, que me fazia, absurdamente, lembrar o cabelo de uma antiga professora de matemática...

domingo, 20 de junho de 2010

[momentos nicola] obras primas

Ontem ainda não foi o dia que ouvi o anunciado concerto para vuvuzela e orquestra em dó sustenido - e não em dó de mim, como já ouvi as más línguas comentar!

Mas o Mestre está a trabalhar na composição do mesmo. Ontem até partilhou comigo uma informação utilíssima que só ele poderia saber: que uma vuvuzela, para o som se coadunar com uma orquestra sinfónica, deve utilizar uma afinação semi-barroca, com um Lá = 412,5 Hz e que as partituras para vuvuzela se escrevem em clave de dó na 2ª linha! Aguardemos.

[sms we can!] relato de uma despedida

He wrote - There is no use in loving things if you have to be torn from them. Anne of the Green Gables.
And I answered - That’s what you said in the storm. I’ve thought since: perhaps I am only a forerunner, too. Perhaps all our loves are merely hints and symbols... Perhaps you and I are types and this sadness which sometimes falls between us springs from disappointment in our search, each straining through and beyond the other... Brideshead Revisited.

[onomástica] se o google não encontra, é porque não existe!

Ninguém se chama Gearcinercia! Perceberam? Ninguém!
(Pelo menos deveria ser proibido, ouviram, pais da menina Gearcinercia?)

E a propósito destes encontros imediatos com nomes improváveis lembro-me sempre de uma colega minha que trabalhava na maternidade de um hospital próximo do meu. Ela perguntava sempre por cortesia como é que o menino se iria chamar e, quando os pais lhe respondiam um nome qualquer deste calibre, ela não se continha. Fazia um discurso inflamado sobre a importância do nome e sobre os problemas e dissabores que o nome lhe poderia trazer em criança e em adulto. Deixou de o fazer no dia em que estava a passar na enfermaria e uma jovem mãe a chamou:

- Doutora, Doutora, estive a pensar no que me disse e falei com o meu marido. Achamos que tem toda a razão e por isso resolvemos dar-lhe outro nome!
- Ah, fico muito contente. Como é que lhe vão chamar então?
- Denivaldo!

[inspiração para uma despedida] double bind

Por alturas da Páscoa retirei este post do blog a pedido de uma amiga. Na altura as palavras dela tocaram-me: "O teu beijo-de-mulata fez-me lembrar um outro beijo, que faz agora 2010 anos..." Mas eu hoje estou azeda, com uma neura digna de Sexta-Feira Santa e, passados já vários meses, a relevância perdeu-se e já tudo se resolveu, fica apenas o exercício de estilo...

Meu querido,

Ambos sabemos que a nossa relação terminou, que não há mesmo volta a dar, mas gostava de te ajudar a cumprir o que me disseste na despedida - que provavelmente vais acabar sozinho! Assim, estive a estudar cuidadosamente o assunto e o que te sugiro é que arranjes uma perturbação de personalidade. Mais propriamente uma Personalidade Evitante, que é a única que te assegurará, sem qualquer limitação, uma carreira florescente de solteiro inve(r)te(b)rado.

Assim, tens de começar a evitar encontrar-te com outras pessoas. Nem é bem começar, é mais continuar, porque no fundo, no fundo, tu tens um enorme potencial para seres bem sucedido nesta carreira de evitante e já tens um CV de fazer crescer água na boca a qualquer Psiquiatra... É só continuar! Esquece todos os amigos que tiveste na infância, lembra-te só das angústias da adolescência, daqueles tempos de férias em que encontravas pessoas novas e ficavas bloqueado. Lembra-te que eras aquele com quem ninguém queria sair, com quem ninguém queria conversar (se calhar racionalizavas e dizias para ti próprio que não te interessava sair, nem te interessava socializar, mas eu sei que isso te angustiava). Foi aí que aprendeste a defender-te e a ficar cada vez mais inepto socialmente. Descobriste que se não aprendesses o nome das pessoas nem soubesses nada sobre elas te angustiavas menos. Não foi consciente, eu sei, mas mas esse hábito de esquecer nomes e informações sobre as pessoas acabou por ficar (isso é óptimo nesta carreira!). Como é que eu sei o que se passava nas férias? Elementar, meu caro. Eu não sei, mas adivinho... Afinal de contas "conheço-te como ninguém"!

Tu preocupas-te com pequenos acidentes, pequenos deslizes que podes cometer na presença de outros, o que merece toda a minha compreensão. Afinal de contas estar com outras pessoas é uma coisa muito complicada. Essa preocupação já é meio caminho andado, mas ainda não chega... Tens de te mentalizar que a relação com os outros nos dá os maiores prazeres, mas também as maiores dores! Aí se joga o domínio e a submissão. (Sim, domínio e submissão! Nada de veres as relações interpessoais como reguláveis, com decisões e papéis flexíveis ou negociáveis. Nas relações há um dominante e um dominado, não há outra maneira de funcionar, estamos entendidos? E tu não suportas ser dominado. Pelo menos por muito tempo. E também não tens interesse em ser dominante porque ser dominante é de uma irrelevância atroz. Entendido? Mesmo? Então adiante.)

E para evitar, de todo, a agruras do pânico e do embaraço, tens de seguir a carreira de fóbico social. Não contactes com outros, prepara-te para ter uma vida isolada, se possível dentro da tua família nuclear e contactos próximos. Podes dar-te com a filha que acidentalmente tiveste, mas só enquanto ela for pequena e gostar de ti incondicionalmente. Ela adora-te e admira-te (até porque está na idade do complexo de Édipo e de acreditar em Príncipes e Princesas), aproveita agora! Mas quando chegar à idade de colocar tudo em causa, dá de frosques o mais rápido possível: ela vai confrontar-te e tu não suportas isso! Mentaliza-te desde já.

Claro que não vais desaparecer da vida dela. Tu é bem formado e nunca farias isso, mas vais estar cada vez menos presente, cada vez menos disponível. Desde já algumas sugestões: vai buscá-la menos vezes, desculpando-te com trabalho e que não tens quem fique com ela e lhe dê apoio no estudo e nos trabalhos de casa. Quando tiveres mesmo de a levar de férias (só uma semana, ou assim, não te preocupes), leva também as amigas dela para que possam desaparecer para dentro dos quartos na brincadeira ou aos segredinhos (as meninas adoram segredinhos e tu não vais querer interferir e ser desmancha-prazeres, pois não?)... Acima de tudo não queiras saber mais nada sobre o que pensa ou sente. (Algo te dirá que está magoada contigo por teres desaparecido da vida dela, mas fizeste-o de forma tão subtil que nem ela própria vai conseguir verbalizar isso. E enquanto ela não to disser literalmente vais conseguir viver e acreditar que até és um pai razoável...)

Entretanto evita as palavras, pelo menos as faladas. Podes escrever poesia para a gaveta, isso seria o ideal. Mas como não tens muito jeito para essas coisas da poesia, das rimas e das sílabas métricas (e sabes bem como sou exigente com as sílabas métricas...) podes usar os telemóveis e a internet com uma gama muito maior de possibilidades. Em todo o caso fala o mínimo possível, escreve o mínimo possível. O silêncio pode perturbar as pessoas que gostam de ti e que haveriam de querer estabelecer uma relação mais profunda contigo, mas também cria uma aura de mistério que te pode favorecer à primeira vista. Isso permite-te evitar a exposição, pelo menos durante algum tempo. Quando perceberem que não vão nunca conseguir ir mais além na profundidade da relação vão ficar frustradas (ou, se não intuirem nada do que te atormenta, vão ficar zangadas), mas paciência. A relação já estava condenada à partida e tu sempre o soubeste...

Se quiseres conquistar alguém (não te aconselho, aliás, proibo-te!) habitua-te a não o fazer directamente, mas sim de forma indirecta: oferece presentes, cozinha, pinta, compõe música, o que conseguires e te dispuseres a fazer na altura. Ao menos uma boa notícia: podes continuar a pintar. Podes até não fazer mais nada e levar isso como profissão, desde que não sejas nenhum fura-vidas, nem te atrevas a tentar ser famoso e expôr em grandes galerias. Ser guia em museus e galerias de arte é a profissão ideal para ti e deves continuar. Assim não te expões e evitas a angústia que tanto te incapacita.

E também podes continuar a ser professor, mas só professor individual. Aulas de um contra um são certamente mais confortáveis e protegem-te de aprender o jogo de cintura necessário para funcionar como líder de grupo. Aliás, nunca funciones em grupo, quanto mais como líder. Quando muito podes pertencer a grupos restritos, com um tempo já longo de existência e relativamente estáveis em termos de elementos, de preferência com datas previamente marcadas para encontros ou que sejam marcadas assim como carneirada. Sim, porque marcar encontros dá muito trabalho e é muito angustiante. E assim como assim, se os outros te tivessem de convidar nunca se lembrariam de ti. Afinal de contas eles também percebem que os evitas...

Habitua-te a pensar que o mundo é impossível e que sobretudo as pessoas são perigosas (também tens o direito a ter as tuas paranóias). Nunca arrisques e desconfia das oportunidades que te aparecem. Vigia bem os outros e fica atento ao menor sinal de crítica, a fim de que possas cortar imediatamente com eles. Nunca aceites um relacionamento, mesmo profissional, sem que tenhas a certeza de ser aceite incondicionalmente. E desconfia, porque há sempre pessoas que gostam de apoiar a desgraça e tu não gostas de abébias. Nem queres abébias de ninguém, ora essa.

No dia a dia e na rua aproveita para contar as pedras do chão, não levantes a cabeça nem olhes as pessoas nos olhos, já que os óculos escuros não são o teu cup of tea. E veste-te como um maltrapilho. Não é para provocar ninguém, obviamente, nem mesmo o teu pai, que não aprova a forma como te vestes. É só para vestires a pele do desgraçado que te propões ser...

Assim podes perceber porque é que te proíbo de te envolveres com mais alguém. É que se estiveres realmente envolvido, quando surgirem críticas (por mais ténues que sejam, ainda que não sejam bem críticas, ainda que seja só uma desconfiança tua de que a pessoa não gostou de alguma coisa que fizeste) não vais conseguir lidar com isso: bem vês que assim não vais poder cortar facilmente com ela e vais ficar num beco sem saída. É que as críticas te angustiam e sabes bem como é quando ficas angustiado... Aliás, só tu sabes nessa altura que ficas angustiado e estás a fazer coisas que não queres, porque a outra pessoa só vê que gritas, dizes coisas terríveis e levas tudo à frente! Mas depois nunca peças desculpa, pelo menos com o coração. Afinal de contas foi ela que te provocou essa angústia de morte...

Se quiseres continuar tranquilo nesta carreira tens de seguir escrupulosamente estes conselhos e, sobretudo, nunca te arrisques a outros vôos. Verás que consegues ficar cada vez mais sozinho e cada vez com menos jeito para estar com os outros. Mas paciência, é como tu sempre dizes, antes só que mal acompanhado!

Até sempre (mas passa de longe).

Variações de Luís Pio de Abreu in Como Tornar-se Doente Mental

[sms we can!] as melhores da sala de partos

Um casal muito jovem esperava o nascimento do seu primeiro "ranhoso" na maternidade do meu hospital. O parto estava atrasado e o futuro pai babado enviava uma mensagem aos sogros dizendo que o bebé ainda não queria nascer nas próximas horas.
Pai babado - Quer escreve-se com C ou com K?
Mãe babada - Claro que é com C! Em Português não existem palavras começadas por K...

[alhos e blogalhos] obrigada, minha nossa senhora do google!

Esta noite houve um senhor, residente no Brasil, que entrou aqui neste estabelecimento não comercial pesquisando pelas palavras-chave "mulatas nuas" e veio dar a este post! Digamos que teve a sua piada...

sexta-feira, 18 de junho de 2010

[momentos nicola] valha-me nossa senhora do dó sustenido

Um dia vou ouvir um concerto para voz e vuvuzela.

(Cheira-me que amanhã será o dia...)

[welcome to mozambique] o nampula-cuamba orient express






(continuando...)

Em menos de cinco minutos o comboio iniciou a sua marcha, a passo de caracol. Como tudo em Moçambique, funcionava ao ritmo de África, sem pressa, sem horário a cumprir. A cada quinze ou trinta minutos havia uma paragem e a vida dentro e fora do comboio sofria uma revolução. Em todas as estações e apeadeiros (estações e apeadeiros é uma forma de dizer, já que não havia uma única plataforma para os passageiros descerem, quanto mais uma estação) havia um aglomerado enorme de pessoas e toda a gente se levantava e acorria à janela, para vender ou comprar os seus produtos. Tudo era transaccionado no meio da maior agitação, desde galinhas até rebuçados, passando por pilhas, garrafas vazias, peneiras, carvão, garrafões de óleo, sabão, comida, roupa...

– Tudo serve para vender nesta terra... As pessoas compram sobretudo o que pensam que pode ser vendido por um preço superior e não o que lhes faz realmente falta. O mesmo produto chega a ser transaccionado dezenas de vezes. É um tipo de economia que não faz muito sentido porque vistas bem as coisas não cria riqueza. Mas o comércio está na alma deste povo, é o que os estimula e os faz caminhar quilómetros e quilómetros para vir ao comboio vender o que quer que seja... Isto é um supermercado andante. Queres comprar alguma coisa? Experimenta! Mas tens de regatear, para que não te tomem por ingénua.
– Talvez à vinda, Irmã...
– Não, à vinda já não vimos de comboio.
– Está bem, vou ver se encontro alguém a vender café da região.
– É melhor comprares a uma mulher, são mais honestas.

Para minha surpresa foi bem mais fácil do que temia e a senhora que mo vendeu foi extremamente afável e correcta, o negócio decorreu literalmente sobre rodas. Por fim ainda me quis oferecer um pedaço de cana-de-açúcar como atenção à cliente invulgar. Não há dúvida. O comércio é a vocação desta gente! Até o comboio, que em todo o lado é apenas um meio de transporte, aqui é o principal ponto de encontro e de vendas...

Em três horas fizemos os 100 km até próximo da aldeia de Murralelo e, por sorte, nem dois minutos depois de sairmos do comboio, cruzámo-nos com um jeep que seguia a direcção da aldeia. O motorista era um português de Aveiro, funcionário de uma empresa agrícola que seguia caminho para ir comprar tabaco e algodão aos produtores das aldeias e ficou satisfeitíssimo por nos dar boleia, já que não falava com portugueses há muito tempo.

De facto, o senhor já não falava certamente com ninguém há muitos dias, porque, depois de se inteirar de quem éramos e o que fazíamos ali, não parou de falar sobre variadíssimos motes, desde o cultivo da mandioca até às suas aventuras na reserva de caça da Zambézia. Casado e com dois filhos em Portugal, passava todos os anos pelo menos seis meses em Moçambique a trabalhar. Agora que os filhos estavam casados e ainda não havia netos, a mulher este ano tinha vindo acompanhá-lo:

– Têm sido os meses mais felizes da minha vida. A minha mulher percebeu finalmente a minha paixão por Moçambique e diz que só é pena não vivermos aqui desde sempre! Aqui é que os nossos meninos deviam ter crescido, disse-me ela ontem. Eu sabia que assim que a trouxesse ela se haveria de apaixonar por África, por estes espaços, este cheiro, estas pessoas. É uma paixão que não tem cura. Só em África é que me sinto vivo!

(continua...)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

[et in iapala ergo] therefore i am




E voltando a Iapala... Onde íamos nós? Este post vai com link, que há mais de 15 dias que não vos falava disto e já nem eu me lembrava onde tínhamos ficado. Mas já tinham saudades, confessem...

A minha primeira lição de cultura Macua aconteceu no segundo dia em Iapala (província de Nampula, Moçambique). Fomos com o Sr. Rafael, motorista das Irmãs, de carro até à estação de comboios de Iapala, a cerca de 7 km da Casa da Missão. Ia connosco até Murralelo à festa da primeira comunhão para nos ajudar a carregar a arca das vacinas. À vinda tínhamos de passar por uma aldeia para vacinar as crianças que no ano anterior não tinham sido vacinadas por causa de uma epidemia de cólera, em que todo o esforço das Irmãs foi canalizado para os doentes agudos.

Rapidamente chegou a hora da partida e ocupámos os nossos lugares no comboio depois de pedir ao maquinista para parar o mais próximo possível da aldeia para onde íamos. Íamos em Segunda Classe. A carruagem de Primeira Classe já não existia. Dizem as más línguas que foi roubada, mas não sei se é mais uma das muitas histórias inverosímeis da guerra civil....

A visão no primeiro embate foi indescritível! Desde galinhas a grandes sacas de carvão, passando por molhos de cana de açúcar e frutos embalados na tradicional forma improvisada com capulanas, enormes volumes ocupavam o espaço disponível do vagão que nos coube em sorte, tudo na maior desorganização possível. Lá nos conseguimos acomodar, mais a arca das vacinas, no meio de uma quantidade enorme de gente, sobre uma saca de carvão, perto de uma mamã que, impassível, dava de mamar ao filho, enquanto com a mão livre segurava duas galinhas vivas presas uma à outra pelas patas com uma corda. O olhar divertido da Irmã Lurdes dizia-me que fora de propósito que não me falara do que ia encontrar, para que visse com os meus próprios olhos.

- Cuidado com a carteira. Quase todas as pessoas que aqui estão ou vêm vender alguma coisa ou estão aqui para roubar...
- Para roubar quem?
- Os outros passageiros. É um absurdo mas é verdade. Isto é como se fosse uma Feira da Ladra ambulante.

Ironicamente, alguns anos antes, após um mês de InterRail nos desconfortáveis comboios da antiga Europa de Leste, cheia de torcicolos e dores nas cruzes, tinha prometido a quem me quisesse ouvir que não voltaria a entrar num comboio para uma viagem de longo curso. A menos que fosse para passar a lua-de-mel no Expresso do Oriente... Pois... Enganei-me! Seis anos depois ali estava eu, felicíssima da vida, no glamour do Nampula-Cuamba Orient Express, a caminho da aldeia de Murralelo para a festa da Primeira Comunhão!

(continua...)

[vozes brancas* #15] e prodígios pequeninos

Alguma vez ouviram o ruído agudo do arrastar de uma cadeira contra um pavimento de mosaico? Ora hoje, cá em casa, comigo de saída de banco, o meu sobrinho descobriu que tinha um talento nato para tocar cadeiras! E que talento... Mas em vez de o distrair para o triciclo ou para os carrinhos (o que me exigiria um esforço físico bastante maior), pus-me a cantar as notas que ele produzia com a cadeira. E em menos de nada, Mr. B. tinha descoberto a força e a inclinação necessárias para tocar consistentemente um dó sustenido e cantá-lo afinadíssimo...

Vai longe, é o que vos digo, que tenho ouvido absoluto (ou melhor, eu propriamente não tenho, mas o meu afinador electrónico tem...). Aquela alma pode só ainda dizer duas palavras inteligíveis, mas afina que é uma beleza. E digo mais, Mozart aos 4 anos tocava piano, mas será que teria conseguido produzir consistentemente um dó sustenido com uma cadeira aos 24 meses?! Cada um é para o que nasce.

(Vizinho de baixo, se me estás a ler neste momento, por favor tenta compreender que temos de encorajar pequenos talentos quando eles se adivinham extraordinários... Se precisares de medicamentos para a enxaqueca temos muitos por aqui. Obrigada.)

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[heróicos quebrados] a rainha santa que amava o povo... e o marido?

Fala Apócrifa de D. Dinis

Toda a vida cantei.
(Ou foi pedir socorro?)
Jogral,
em meu pinhal,
o próprio vento canta.
Mas sei, enfim, que morro
da agonia que é ter
por mulher
uma Santa.

Jogral, em meu pinhal,
já só o vento canta.


David Mourão Ferreira

[sns we can!] dos que têm optado por ficar nos hospitais públicos


Salvem os gatos pingados! Afinal de contas eles já são só meia dúzia...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

[inspiração para um reencontro] em modo piroso


O poeta diante daquelas pedras cruzara os braços e sorria dolorosamente, imóvel e sombrio no seu fato negro. Depois, no silêncio, a sua voz ergueu-se, saudosa e dolente:
- Vocês lembram-se, rapazes, nas Flores e Martírios, de uma das coisas melhores que lá tenho, em rimas livres, chamada 6 de Agosto? Não se lembram talvez... Pois eu vo-la digo, rapazes!

Baixou a voz como numa confidência sagrada, recitou, com um ardor surdo, mordendo as sílabas, trémulo, numa paixão efémera de nervoso:

Vieste! Cingi-te ao peito.
Em redor que noite escura!
Não tinha rendas o leito,
Nem tinha lavores na barra
Que era só a rocha dura...
Muito ao longe uma guitarra
Gemia vagos harpejos...
(Vê tu que não me esqueceu)...
E a rocha dura aqueceu
Ao calor dos nossos beijos!


Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancas batidas do sol, enxugou uma lagrimita e num gesto triste apontou:
- Foi ali.

Eça de Queirós in Os Maias

terça-feira, 15 de junho de 2010

[vudu no mundial] o escândalo do "alfinete dourado"

Fotografia de João Henriques

Meus amigos, eu sei que sou apenas uma loira sem uma gota de androgénios no cérebro e que, portanto, a compreensão do futebol não me está destinada. Posso dizer, aliás, que a primeiríssima vez que vi uma partida do princípio ao fim foi, salvo erro, um França-Turquia no Euro 2000 (estava sozinha em casa há várias semanas a estudar Anatomia II, tá?).

Passada a cadeira de Anatomia II (com distinção mas em segunda época, em parte também por causa do Euro 2000), vi mais uns quantos jogos da Selecção Nacional nos Europeus e Mundiais, CV mais que basto para me considerar habilitada a falar sobre o tema. E hoje o Sr. Professor lincou esta reportagem deliciosa e não resisto a partilhá-la também convosco...

Já dizia o meu mentor espiritual que cada costume ou cada vício da sociedade ocidental encontraria inevitavelmente o seu homólogo africano. Serve, pois, este post para perspectivar a questão da corrupção activa e passiva e do doping no futebol. Cá para estas bandas do mundo usa-se a nandrolona e afins, compram-se árbitros de futebol, fecham-se os olhos a falcatruas absolutamente gritantes. Em latitudes mais meridionais contratam-se feiticeiros para ficarem ao serviço das selecções. Ora vejam.

"Aos 84 minutos, a selecção do Benim estava empatada a zero com a do Gana num jogo em que só a vitória lhe interessava para a qualificação para o CAN 2010. Constant Danvikpenon, 41 anos, feiticeiro da selecção, já tinha tentado fazer vários truques para que a bola entrasse na baliza dos ganeses; com a ponta de um pequeno corno castanho, espalhou um líquido preparado com ervas locais nos bancos, no chão e nos cacifos do balneário dos adversários, espalhou uma solução à base de óleo vermelho no relvado e queimou folhas e paus numa casca de árvore sagrada para dar chama à sua equipa. Nada resultou.
- Decidi utilizar o meu truque mais forte - diz.

Tira do bolso o artefacto – um osso de leão, recheado com uma massa castanha, com dois dentes atados na parte de trás e com uma agulha pendurada.
- Digo as palavras mágicas e o nome do guarda-redes, levo a agulha à boca e espeto-a nesta terra que recheia o osso. Se eu quiser que o guarda-redes erre, o guarda-redes erra. Se eu quiser que o guarda-redes parta o pé, ele parte o pé. Se eu quiser que o guarda-redes morra…ele morre.

Poucos minutos passaram após o truque e, diz Constant, o Stade de la Amité pulou de alegria para festejar o golo do Benin. O feiticeiro sorri, orgulhoso:
- Eles trouxeram todos os seus charlatões e os seus marabouts, mas o nosso vodun foi mais forte!

No Benin, ainda mais do que em qualquer outro país africano, um jogo de futebol joga-se dentro do relvado, interpretado pelos jogadores e, fora dele, disputado por mestres de vodun, que normalmente se escondem em anexos do estádio. Durante 90 minutos utilizam truques misteriosos, tentam defender-se das magias do oponente, lançam feitiços para fintar os guarda-redes e apelam aos espíritos divinos para desferir o golpe letal na baliza adversária.

Na verdade, esta religião autóctone africana pouco tem a ver com a imagem diabólica que os filmes de Hollywood propagaram – o vodun é muito mais do que espetar alfinetes num boneco aterrorizador."

Reportagem reproduzida daqui e que vale a pena ler na totalidade.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

[as melhores do serviço de urgência] memórias do hospital do rego

Se eu poderia ter nascido na Cova da Moura? Poder podia, mas provavelmente não teria sobrevivido... Esta foi a triste conclusão a que cheguei certa noite no Hospital do Rego (o primeiro hospital onde trabalhei e de que guardo memórias fantásticas). Foi no Curry que percebi que o Criador não me tinha dotado de inteligência prática suficiente para me desenrascar em situações potencialmente catastróficas para a minha integridade física, pelo que foi bem a tempo que nunca me ofereci para andar no INEM a ir buscar baleados à Musgueira ou à Cova da Moura...

No meu primeiro banco de cirurgia fiquei logo sozinha a tomar conta do balcão. Foi uma noite calmíssima à excepção de uma senhora com tromboflebite que mediquei adequadamente e, nada mais havendo a fazer, pedi ao jovem enfermeiro que estava com a senhora para me manter informada de qualquer alteração e voltei para o meu gabinete. O problema é que o jovem enfermeiro que estava com a senhora era mesmo jovem e levou a noite inteira a acordar-me de meia em meia hora para me dizer:
- Doutora, o estado da doente é sobreponível.

Só suportei aquela tortura sem lhe dar dois berros porque pensei que estava a ser "praxada" e não valia a pena rebelar-me... Mas não, era mesmo um verde excesso de zelo e de juventude, que foi devidamente cerceado no dia seguinte pelo enfermeiro-chefe...

Mas não era a história da minha primeira noite na Cirurgia do Curry que vinha aqui contar-vos. Hoje venho contar-vos a história da minha segunda noite de banco de Cirurgia:

Ora, estava eu muito calmamente, sem nada para fazer, no meu gabinete a passar pelas brasas, quando a médica da triagem me veio bater à porta dizendo que o CODU tinha ligado a informar que ia transportar um baleado para o nosso hospital. Tudo bem, respondi, ele que viesse. Que me avisasse quando ele chegasse, se fizesse o favor. E voltei descansadamente para a minha cadeira: "Se fosse grave levavam-no obviamente para o São José...", era a minha convicção.

De facto, vinte minutos depois chegou "o baleado", um homem na casa dos trinta, a coxear bastante mas ainda assim a andar pelo seu próprio pé. Ofereci-lhe uma cadeira de rodas para o levar para a sala de tratamentos, mas ele recusou liminarmente de forma bastante agressiva. Que podia andar perfeitamente, que não era nada a primeira vez que levava um tiro, que sabia muito bem desenrascar-se sozinho e que só tinha vindo para o hospital porque a polícia estava no local quando o INEM tinha chegado. E que assim que saísse dali ia "procurar o gajo que lhe tinha dado o tiro e desfazê-lo à pancada!"

Na ingenuidade dos meus vinte e tal anos interpretei esta afirmação como fanfarronice de alguém que acabou de sofrer uma situação de stress e não liguei nada. Respondi qualquer coisa paternalista como: "Não faça isso, então. A lei está do seu lado e a justiça existe para não termos de fazer esse tipo de coisas com as próprias mãos." Ao que ele respondeu simplesmente que não gostava da polícia, que deixasse a polícia fora disso, que já tinha estado preso oito anos porque tinha morto um gajo e que só por isso não lhe ia enfiar mais um tiro nos cornos (sic). Isto tudo dito com uma calma gélida.

E foi assim que, ainda a caminho da sala de tratamentos, fiquei a saber que estava prestes a ter de tratar sozinha um psicopata assassino. Pior, um psicopata assassino furioso por ter acabado de levar um tiro no tornozelo.

E então que faço eu, meus amigos? Vou chamar o segurança para ficar à porta da sala de tratamentos para me defender do que desse e viesse? Não, que o senhor tinha acabado de dizer que não gostava de polícias e eu não fazia a menor ideia de como é que ele poderia reagir. Vou chamar um enfermeiro alto e espadaúdo sob o pretexto de que precisava da ajuda dele para suturar a ferida? Não, que toda a equipa de enfermagem estava ocupadíssima com duas reanimações que tinham acabado de chegar. E imaginem só a vergonha de ir chamar um enfermeiro para me ajudar a dar um pontinho num tornozelo...

Então passei directamente ao plano D (desenrasca-te). Respirei fundo. Também não podia correr assim tão mal, que diabo. Se lá estava a polícia, de certeza que tinha sido revistado e portanto não podia estar armado. Lá fiz das tripas coração e disse-lhe:

- O Senhor vai despir-se da cintura para baixo, deitar-se e cobrir-se com este lençol que eu já venho.

E foi assim que tratei calmamente de um psicopata assassino, que não tugiu nem mugiu durante o procedimento. Qual foi o fundamento científico da minha atitude, perguntam vocês. É muito simples, meus amigos, se eu tivesse de fugir a qualquer momento, ele sem calças nunca viria atrás de mim! Ora aprendam que eu não duro sempre. Se não os podes vencer pela força podes sempre vencê-los pelo ridículo.

Nota: Não tentem fazer o mesmo, que se fosse hoje também não o teria feito, valha-me Santa Rita de Cássia, que de cada vez que penso nisto até me arrepio...

[as melhores do serviço de urgência] memórias do curry

Janeiro de 2006. Corredor do hospital Curry Cabral. Intervenientes: eu e um senhor septuagenário com possível AVC:

Eu - O senhor sabe que dia é hoje?
Senhor com possível AVC - Hoje é dia 26 de Janeiro de 2006.
Eu - Exactamente, muito bem. E sabe onde está?
Senhor com possível AVC - Estou dentro de uma máquina de escrever.
Eu - Sim senhor, vamos então ali fazer um examezinho à cabeça, está bem?

[alhos e blogalhos] valha-me nossa senhora do google

Então não é que houve um senhor que veio cá dar através da pesquisa "mulata de para o trânsito"? Assim mesmo, sem r no fim e tudo... Agradeço a lisonja, mas não temos aqui ninguém com essas características! Qualquer dia coloco um aviso sobre conteúdos à entrada do blog: Atenção, este espaço não contém mulheres nuas, mulatas selvagens (continua a estar no top 10 das pesquisas no google), não fala sobre relações interraciais, nem afins... A tecla para entrar diria qualquer coisa como "Estou consciente de que beijo-de-mulata é uma flor silvestre, lindíssima por sinal, e não estou à procura de pornografia, por quem me toma?" e a tecla para voltar ao google: "Obrigada pelo aviso, assim não perco tempo nem..." Pouco refinado e pouco subtil, mas de vez em quando preocupo-me com estas coisas, pronto...

domingo, 13 de junho de 2010

[vozes brancas* #14] gaelic blessing



Porque tenho a certeza que o mais importante é ter paz e estar presente...

A Gaelic Blessing

Deep peace of the running wave to you
Deep peace of the flowing air to you
Deep peace of the quiet earth to you
Deep peace of the shining stars to you
Deep peace of the gentle night to you
Moon and stars pour their healing light on you.

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

[welcome to mozambique] a alfândega

Passada a fila interminável para mostrar vistos e passaportes (que à primeira nunca estão bem, é sempre preciso fazer muitas contas para lhes fazer ver que os dias que lá vou ficar são os dias que constam no bilhete de regresso e que não, não lhes tenho de dar dinheiro para me fazerem entrar no país porque o vou fazer legalmente), o problema seguinte é passar na alfândega com a bagagem. O aeroporto de Maputo é conhecido por ser muito difícil de passar sem ficar com as coisas apreendidas pelos funcionários corruptos, a quem muitas vezes é necessário oferecer dinheiro e presentes para passar com a bagagem. Assim mesmo à descarada. Por isso, algumas amigas minhas já me tinham explicado como fazer.

a) Não ter nada de valor à vista. Eu costumo embrulhar algumas coisas com papel de embrulho e colocar uma etiqueta a dizer "Presépio e Estatueta de S. Norberto" (ideia brilhante da minha mãe).
b) As coisas de maior valor devem ir no fundo da mala e por cima colocar roupa interior feminina espalhada e/ou muitos pensos higiénicos. Nunca falha. As funcionárias mulheres riem-se com olhar cúmplice e os homens só não coram porque não são caucasianos. E geralmente não exploram muito mais (Sandra, só tu para me teres ensinado esta com o ar mais natural do mundo. E asseguro-vos, meus amigos, funciona mesmo!).
c) Quando nos perguntam o valor dos "presentes" dizer sempre que não valem nada, que só têm valor simbólico. Mesmo assim, uma vez perguntaram-me de quanto é que era esse valor simbólico (Helloooo!).

Da última vez, porém, não tive tempo para me dar a estes subterfúgios, não tive tempo de embrulhar os medicamentos e o equipamento. Nem mesmo de espalhar pensos higiénicos por cima. E portanto passei ao plano B: pedi para ser o Irmão Martín dos Missionários Combonianos a ir-me buscar. Aquele homem é uma lenda, um autêntico furacão! Estaciona sempre no lugar dos VIP, entra calmamente nos sítios mais improváveis, desde os bairros de lata mais perigosos até ao palácio do Presidente, apresenta-se a todas as pessoas importantes, conhece pelo nome cada funcionário das repartições e do aeroporto, mete conversa com toda a gente. Foi a primeira vez que atravessei a alfândega placidamente a assobiar para o lado sem que ninguém me tentasse abrir a mala!

[welcome to mozambique] a bagagem

O Domingos a carregar o jeep com as minhas malas.

Os estimados leitores que leram o post de ontem sobre a minha mala de viagem devem estar a pensar o que eu pensaria se o tivesse lido (e não vou aqui dizer, como muitos, que nunca me teria dado ao trabalho de ler uma coisa tão fraquinha, que isso é coisa que não compreendo. Pois se até me dei ao trabalho de a escrever...):

- Então esta gaja, que diz que vai para a África profunda, que anda de jeep em picadas e pontes de bambu, que já mudou um pneu em plena savana, não consegue fazer uma mala para uma semana sem dar conta das costas de um gajo? E depois ainda volta com uma mala de compras?! Assim não era preciso ir para Moçambique, mais valia ir fazer um safari para o Colombo. Assim só estragava as costas dela. E depois diz que é falta de poder de síntese! O que lhe falta sei eu...

(Bem, eu não sou tão mazinha. Eu pensaria apenas: "Curioso, este post parece muito incongruente com as viagens e o trabalho de voluntariado no meio do mato em Moçambique..." E talvez acrescentasse que se não tinha poder de síntese pelo menos podia ficar calada...)

Pois... a verdade é que quando vou para Moçambique tudo é diferente. Por exemplo, da última vez que fui levei 100 kg de bagagem. E sim, não coloquei um zero a mais! Como o meu bilhete foi comprado pelos Missionários Combonianos em Maputo, tinha direito a levar 60 kg. E já que ia com uma amiga que também tinha direito a levar mais 60 kg, levei mais 40 kg e ela... 20.

Eram seis malas carregadas, mais uma mochila de cabine, o laptop e a guitarra. (A minha outra paixão é a música e o canto. Já que não sei dançar nem tocar batuques poderia tocar umas guitarradas no mato e ensinar canções aos meninos para eles dançarem.)

Dessa vez quem me foi levar ao aeroporto foi o meu santo pai. Claro que ele se passou completamente! Levava 100 kg de bagagem, seis malas, uma mochila de cabine, um laptop E A GUITARRA? Que necessidade havia de levar a guitarra? Ora, retorqui, quem leva 100 kg de bagagem, uma mochila de cabine e um laptop por que razão não levaria uma guitarra? O que pesava era tudo o resto, não a pobre da menina mai linda das unhas da mamã. Mas sua santidade estava desorientada... Que me tinha sempre tentado ensinar melhor e não era verosímil que não tivesse aprendido! E pronto, colocadas as coisas nestes termos, a conversa ficou por ali e a menina mai linda das minhas unhas ficou mesmo em terra para não dar um desgosto ao avô...

Mas já andamos a divagar. E perguntam os estimados leitores: o que é que levavas nesses 100 kg de bagagem?! Eu até respondo: levo só o indispensável para sobreviver na savana. Claro que isso inclui o meu secador, com o qual tenho uma relação fortíssima, bastantes artigos de higiene (sim, bastantes mesmo, que os toalhetes Dodot já me salvaram a vida certa vez, em que uma amiga minha apanhou cólera e eu não porque ela lavou as mãos numa água que lhe trouxeram e eu limpei as mãos a um toalhete...) e um grande carregamento de pastilhas. Isso tudo mais a roupa pesariam uns 15 kg. O resto eram medicamentos e equipamento médico. Mais descansados?